O olhar multidimensional do jornalismo de dados sobre sistemas alimentares

Créditos: Denise Matsumoto / O Joio e O Trigo

Em 2020 a questão alimentar tem ocupado o debate público no mundo e no Brasil. Entre os principais assuntos no país, estiveram o aumento do faturamento das grandes redes de supermercados durante franca crise econômica provocada pela pandemia de covid-19, bem como a escalada do engajamento de novos movimentos – a exemplo dos entregadores de aplicativos por condições dignas e justas de trabalho, que protagonizaram um dos mais contundentes episódios de mobilização este ano. Recentemente, em meio a alta do preço do arroz – cujos efeitos perversos na alimentação da população foram amplamente abordados em diversas mídias – é divulgada a triste notícia do Brasil de volta ao Mapa da Fome, com indicadores graves sobre a insegurança alimentar da população. Com repercussão à mesma altura, a nota do Mapa – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento colocando em clara ameaça o Guia Alimentar para a População Brasileira, gerou centralidade sem precedentes à discussão sobre dietas alimentares, a influência da indústria de alimentos nas políticas públicas e a urgência da discussão sobre a redução no consumo de produtos ultraprocessados. Os momentos de ampla discussão sobre esses diferentes temas, lado a lado à incisiva reação da sociedade civil brasileira,  evidenciaram a profundidade e importância da agenda da alimentação no Brasil.

Refletir sobre a questão alimentar, faz necessária a conexão entre pontos: Quais as relações que essas dimensões podem guardar entre si? De que forma os problemas e desafios enfrentados atualmente se tangenciam ou estão entrelaçados, em âmbito nacional e internacional? Fica evidente, nesse complexo cenário, o quanto é importante trazer à tona a dimensão sistêmica da questão alimentar – que traz em si uma série de problemas e soluções em âmbitos sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais. 

A atual forma de estruturação do sistema alimentar hegemônico, voltado à lógica corporativa, tem impacto direto no acesso de alimentos da população e no esgotamento da capacidade de regeneração dos recursos naturais. Quando o alimento é tratado como mercadoria – simples tradução de commodities – e não como um direito, aumenta o poder e a influência da indústria de alimentos sobre a quantidade, a composição e a qualidade da alimentação da população.  

A alta do preço do arroz é um exemplo da extensão da influência internacional na alimentação brasileira. A alta do dólar e a consequente inflação foram os motivos amplamente divulgados para explicar o significativo aumento do preço e, portanto, o impacto negativo no acesso da população a um alimento que, além de cotidiano, é fundamental na nossa cultura alimentar. Esses dois motivos, no entanto, mostram somente parte de uma estrutura complexa. E são raras as coberturas que trazem um olhar atento que contribua para a compreensão dos planos de fundo de questões como essa.

O site jornalístico O Joio e o Trigo, apoiado pelo Instituto Ibirapitanga desde 2019, traz informações sobre implicações políticas, sociais, econômicas e ambientais do sistema alimentar.

As matérias de escrita afiada e comunicação direta fazem mais do que apresentar elementos que compõem o sistema: por meio de suas investigações, O Joio e o Trigo vem contribuindo para dar corpo, profundidade e diversidade dimensional a um debate fundamental no país – a desigualdade alimentar.

Diversas questões relacionadas a este grande tema foram decantadas e analisadas por meio das narrativas do site jornalístico, que vem alcançando a elasticidade e complexidade dessa pauta. Incluem, transversalizam e visibilizam questões de gênero e raça, estratégias corporativas de fast-food e aplicativos de entregas, importantes perspectivas sobre desertos e pântanos alimentares e, também, apontam para as raízes coloniais do Brasil, em análise sobre a soberania territorial – tendo como consequência o apagamento da cultura alimentar dos povos originários. 

As matérias também tem constantemente evidenciado o retrocesso em políticas públicas no campo da segurança alimentar responsáveis por proteger o direito à alimentação da população brasileira.

Entre elas, estão as iniciativas governamentais para a promoção da alimentação adequada e saudável, a exemplo do Guia Alimentar para a População Brasileira. Fundamentado em estudos científicos e saberes culturais tradicionais, é o instrumento orientador para políticas, programas e ações nesse campo.

O Guia é baseado na classificação NOVA1, elaborada pelo NUPENS/USP – Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde Pública, Universidade de São Paulo, também apoiado pelo Ibirapitanga. Tem orientado e servido como referência em vários países na discussão sobre alimentação,  a partir da categorização dos alimentos por nível de processamento: in natura, minimamente processados, processados e ultraprocessados. Sua regra de ouro – Prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados. (…) Descasque mais e desembale menos.– evidencia o papel nocivo dos ultraprocessados na alimentação

Os ultraprocessados são produtos fabricados pela indústria alimentícia que, no geral, contém aditivos químicos, baixo valor nutricional e alto teor de gorduras, sais e açúcares. Contribuem para a obesidade, desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis como diabetes e câncer e, portanto, devem ser evitados.

A recém divulgada nota técnica do Mapa, que solicita revisão do Guia Alimentar para a População Brasileira, concentra as críticas ao documento no conceito de alimento ultraprocessado. Houve forte e rápida reação da sociedade civil – incluindo publicação de nota e mobilização para assinaturas de um manifestorelatada por O Joio e o Trigo, que teve um importante papel na visibilidade a essa pauta. Além de trazer luz à ação da sociedade civil, a matéria ressalta os conflitos de interesse nos argumentos que embasam a nota técnica, e explicita relação entre o pedido de revisão e a indústria alimentícia. 

Além dos limites nacionais: investigações jornalísticas sobre as estratégias da indústria alimentícia na América Latina

Para tornar mais difusas a consumidores finais sua forma de produção, operação e distribuição, a indústria de alimentos utiliza mecanismos de comunicação. Combina estratégias de publicidade e marketing, com pouca transparência nas informações sobre os produtos que oferece para consumo. Falar em indústria de alimentos é uma forma de sintetizar grandes operações industriais e financeiras promovidas por corporações e holdings. Suas estratégias são viabilizadas e conectadas de forma transnacional. Não há atuação independente e isolada num país – o que também proporciona a essas corporações uma alta concentração de poder.

Diante deste cenário, iniciativas que discutem a questão alimentar de forma global e conectam diferentes regiões do mundo são fundamentais para a elaboração de conhecimento e estratégias políticas que façam frente ao corporativismo. “Para construir uma realidade mais justa, democrática e diversa”, nasceu a Bocado, rede latinoamericana de jornalismo organizada em defesa dos sistemas alimentares da região. 

A equipe de Bocado conta com jornalistas da Argentina – Soledad Barruti, Paula Mónaco Felipe, e Mike Arista – e do Brasil – João Peres, Moriti Neto e Tatiana Merlino, além do fotojornalista mexicano Miguel Tovar e a designer brasileira Denise Matsumoto. A rede é apoiada pelo Instituto Ibirapitanga por meio do O Joio e o Trigo, parceiro da iniciativa.

Lançada em 2020, já com os desafios para a cobertura jornalística sobre os cuidados necessários relacionados à crise sanitária, como por seus impactos diretos à alimentação, a rede Bocado traz como uma de suas primeiras “investigações comestíveis” o supermercadismo. 

No atual contexto, o supermercadismo tem sido marcado, por um lado, pelo enfraquecimento das condições e da garantia de direitos dos trabalhadores, que são hoje uma das categorias mais vulneráveis à covid-19. E, por outro lado, é o modelo que gerou às corporações alta lucratividade, num período em que paradoxalmente, grande parcela da população passou a enfrentar o desemprego, redução de renda, entre outras dificuldades econômicas que afetam o acesso à alimentação saudável. 

Ainda no contexto da pandemia, a Bocado analisou, em narrativas profundas e sensíveis, o chamado social washing, estratégia que proporcionou às corporações formas de associação de suas marcas a causas sociais transnacionalmente. A associação, em alguns casos, oculta a contradição entre a ideia de que a mesma marca que supostamente se preocupa com a saúde do público, por meio de uma ação que reforça o distanciamento social – necessário para prevenção à covid-19 – é aquela que vende produtos ultraprocessados, associados à obesidade, diabetes e câncer que podem agravar os casos da mesma doença.

A organização e operação de sistemas alimentares a partir da mesma lógica, causa insegurança alimentar, precarização do trabalho, desmatamento de florestas,  confinamento de animais e emissão de gases de efeito estufa que contribuem para as mudanças climáticas. Bocado traz exemplos dessas consequências, no Brasil, com a criação de um ambiente propício à uma nova pandemia, na Argentina, com o esgotamento dos recursos naturais e da biodiversidade, e no Haiti, pelo caso de  uma multinacional que, ao oferecer “doações”, tenta entrar com toneladas de sementes transgênicas de milho e legumes no país.

Fazer emergir a diversos olhos, além da leitura especializada, as inúmeras conexões inerentes à questão da alimentação – políticas, econômicas e socioambientais –  que constitui uma das estratégias fundamentais para que o acesso à informação encurte distâncias para a promoção de sistemas alimentares justos e sustentáveis.

Notas

  1. A classificação NOVA leva em conta os efeitos de processamento dos alimentos. É a partir de sua publicação que inicia-se a aplicação do termo “ultraprocessado” ao contexto da saúde pública. Definição original no site do NUPENS/USP. [voltar]
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